AS GUARDAS MUNICIPAIS, A SEGURANÇA PÚBLICA E A (DES)CONSTITUIÇÃO FEDERAL: DESTRUINDO PRINCÍPIOS E COMPETÊNCIAS.

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Luiz Augusto de Mello Pires

Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) por onde possui, também, especialização em Direito Penal. É especialista em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professor de Direito Penal na Escola Superior do Ministério Público e na Escola Superior da Defensoria Pública do Estado.

Existem, entre outros tantos, dois princípios de direito que os povos civilizados, especialmente seus representantes políticos, não podem desconhecer, nem desprezar: primeiro, que todos os países democráticos são regulados e organizados por um conjunto de normas denominado de Constituição; segundo, o axioma jurídico “Scire leges non est verba earum tenere, sed vim ac potestatem”, ou seja, “Saber as leis é conhecer-lhes, não as palavras, mas a força e o poder”[1], constitui princípio de hermenêutica jurídica de extrema relevância à observação e à interpretação do alcance das normas, sob pena de deslegitimar o próprio sistema legislativo de um Estado, como, aliás, há muito alerta o Ilustre Jurista português J.J. Canotilho[2]:

“A história mostra que muitas constituições ricas na estrutura de direitos eram pobres na garantia dos mesmos. As ‘constituições de fachada’, as ‘constituições simbólicas’, as ‘constituições alibi’, as ‘constituições semânticas’, gastam muitas palavras na afirmação de direitos, mas pouco fazem quando a sua efectiva garantia se os princípios da própria ordem constitucional não forem os de um verdadeiro Estado de direito. Insto conduz-nos a olhar noutra direção: a dos princípios, bens e valores”. 

Com estas premissas, do texto inserto na Carta Política brasileira, dos princípios, bens e valores que reclamam um olhar de acordo com a hermenêutica jurídica, este trabalho pretende alinhavar breves apontamentos sobre a pretensão das Guardas Municipais de incorporarem alguns dos poderes e prerrogativas inerentes às Instituições de Segurança Pública definidas na Carta Política de 1988.

Com efeito, a Constituição Federal de 1967, sob à expressão segurança nacional, atribuiu competência exclusiva à União Federal para legislar sobre segurança pública (art. 8º, IV), estendendo o encargo, porém, o de preservar a ordem e a segurança interna nos Estados Membros, também às polícias militares (art. 13, § 4º). Ocorre, no entanto, que na nova ordem constitucional, precisamente nas disposições do artigo 144, da Carta Maior, garantir segurança pública ao povo brasileiro deixou de ser um dever tributável apenas à União, eis que a preservação da ordem pública e do patrimônio passou a ser direito e responsabilidade de todosdestacando-se que a aludida norma aponta, com precisão, os Órgãos legitimados ao exercício da segurança pública (incisos I a V). Todavia, a expressão em destaque e a permissão concedida aos Municípios para criarem suas Guardas Municipais (§ 8º), acabaram por ensejarem interpretações de toda a ordem e interesses, como se fosse possível retirar daquela regra sua natureza numerus clausus para transformá-la em tipo aberto, inclusive desconsiderando-se a determinação para que fosse edita lei visando a organização e o funcionamento destes Órgãos, de maneira a garantir a eficiência das atividades que lhes foram atribuídas. Sem adentrar nas demais Instituições de segurança pública, à polícia civil coube a função de polícia judiciária, encarregada da apuração de infrações penais; às polícias militares, a de policiamento ostensivo e preservação da ordem pública (§§ 4º e 5º). Disto resulta a lógica jurídico-constitucional de que, no âmbito dos Estados Membros, a segurança pública, entendida como o dever de preservar a ordem social através da prevenção e do combate à criminalidade, bem como na identificação e responsabilização dos que a afrontam, compete exclusivamente às polícias militar e civil. Ainda assim, mesmo diante da clareza desse ordenamento, interpretações confusas e interesses não suficientemente esclarecidos, sob o manto do princípio de que a segurança pública é direito e responsabilidade de todos, pretendem que as Guardas Municipais sejam alçadas à condição de Órgão com atribuições inerentes à segurança pública. E isto conforma equívoco bárbaro, de consequências imprevisíveis, cuja responsabilidade por estas iniquidades é integralmente do Congresso Nacional, como se verá. Inicialmente, diga-se que a criação das Guardas Municipais, por força de permissão constitucional, trata-se de encargo a ser suportado pelos Municípios, se o desejarem, com atribuições específicas, como ressalta do artigo 144, § 8º, da Carta Política, ao proclamar que Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalaçõesconforme dispuser a lei”Assim de acordo com o aforisma de Carlos Maximiliano, a força da norma está na possibilidade dos Municípios de instituir Guarda Municipal, enquanto o poder assenta-se na sua finalidade, que é a de proteger bens, serviços e instalações pertencentes à municipalidade, conforme dispuser lei elaborada pelos legislativos municipais, posto que se trata de interesse local, nos termos do artigo 30, inciso I, da Constituição Federal:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I – legislar sobre assuntos de interesse local;

Assim, sem escaparem da força e do poder da norma originária, apenas a municipalidade interessada na criação das Guardas Municipais detêm competência e legitimidade para editar normas de interesse local. No entanto, não o fizeram, porque, mesmo diante do princípio federativo de que trata o artigo 1º, da Constituição Federal[3], assim como o postulado da hierarquia das leis à Carta Política, o Congresso Nacional, ultrapassando os limites de suas atribuições, editou a Lei nº 13.022/14, a qual, por isto e por outras razões, padece de inconstitucionalidade formal e material.

Com efeito, a Lei nº 13.022/14 é, induvidosamente, inconstitucional sob seu aspecto formal. Veja-se que da leitura conjunta dos artigos 22, 23 e 24, da Constituição Federal, os quais definem as competências da União, dos Estados e as que se afiguram concorrentes entre ambos, ressalta a conclusão de que inexiste qualquer reserva legal que os legitime à iniciativa de legislarem sobre instituição e organização das Guardas Municipais. Acresça-se à  interpretação de tais normas as disposições do mencionado artigo 30, inciso I, da Constituição Federal, o remate no sentido de que está instituída a competência legislativa municipal, com absoluta exclusividade, é inexorável. Oportuno, sobre o tema, trazer à lume as ponderações do Eminente Professor Ives Gandra Martins:

“Os municípios podem ter suas guardas municipais, cujo destino é a proteção de seus bens, serviços e instalações.

O constituinte acrescenta que tal proteção dar-se-á nos termos da lei que, à evidência, cuidará da sua organização.

A lei de criação da guarda há de ser, necessariamente, municipal.

Não pode extrapolar os limites da Constituição, devendo, apenas, cuidar da área de atuação referida no Texto Supremo”.

Portanto, se não pertence às competências constitucionais da União e dos Estados legislarem sobre Guardas Municipais, e, ainda, em se tratando de tema de interesse local dos Municípios, tem mesmo razão o ínsigne constitucionalista quando pondera que A lei de criação da guarda há de ser, necessariamente, municipal. Aliás, oportuno esclarecer que a própria Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados, através do bem lançado Parecer da lavra do Eminente Dr. João Ricardo Carvalho de Souza, não discrepa deste entendimento:

 

“Como é possível observar-se, matéria relativa a guardas municipais não está incluída entre as matérias de competência legislativa da União.

Por outro lado, no art. 30, I, da CF/88, está previsto que compete ao Município legislar sobre assuntos de interesse local.

Entre esses assuntos, inclui-se, obrigatoriamente, a questão das guardas municipais, uma vez que as guardas municipais destinam-se à proteção dos bens, serviços e instalações dos Municípios.

Em sendo a guarda municipal órgão de atuação voltado, exclusivamente, para a proteção do patrimônio municipal, a lei a que se refere o art. 144, 8º, da CF/88, é, sem nenhuma dúvida, uma lei municipal, nos termos do indigitado art. 30, I.

Nesse sentido inclina-se o entendimento da maior, e melhor, parte dos doutrinadores pátrios, que, de forma pacífica, definem as guardas municipais como assunto de interesse do município e, portanto, em relação às quais a competência legislativa é municipal.

(…)

Do conjunto de textos reproduzidos, de autoria de renomados juristas brasileiros, podemos afirmar, fundamentadamente, que são os Municípios que podem, em razão da natureza da matéria e da competência legislativa municipal, elaborar a lei que disponha sobre as normas relativas às guardas municipais que vierem a criar.

Em sendo municipal a competência legislativa em relação à matéria, uma proposição apresentada, por Parlamentar, no âmbito do Congresso Nacional, sobre este tema, seria inconstitucional, por ação, sob o aspecto formal, em razão de ofensa ao princípio federativo.

Para se afastar este óbice, seria necessária a previsão, no texto da Emenda Constitucional que determinasse a obrigatoriedade da constituição de guardas municipais em todos os municípios brasileiros, de que as guardas municipais seriam regulamentadas por lei federal.

Dessa forma, se estaria atribuindo à União a competência legislativa sobre as guardas municipais, o que possibilitaria a iniciativa parlamentar sobre o tema”.

 

Como não há previsão na norma do artigo 144, § 8º, da Carta Maior, de edição de legislação de natureza federal visando a regular e a organizar as Guardas Municipais, a Lei nº 13.022/14, porque fere o princípio federativo, está irremediavelmente fulminada por manifesta inconstitucionalidade formal. Assinale-se, ainda, que não se pode olvidar, por extrema relevância ao caso, que nos autos da Ação Direita de Inconstitucionalidade nº 5156, promovida pela atenta e prestigiosa Federação Nacional de Entidades de Oficiais Estaduais (Feneme), os Municípios, representados pela Confederação Nacional de Municípios – CNM, esta na condição de amicus curiae, sobre a inconstitucionalidade da norma referida assim asseveraram:

“(…)

DO PEDIDO

Primeiramente, dada a relevância da matéria e a representatividade da Confederação Nacional de Municípios (CNM), reiteramos a solicitação de admissão da entidade, na qualidade de AMICUS CURIAE, na ação acima referida, já manifestada no pedido de habilitação apresentado em 22 de setembro de 2014, bem como, sejam acolhidas as razões de mérito. Quanto ao tema central da ação, fica claro, diante de todo o exposto, que os dispositivos legais impugnados são inconstitucionais de forma que a Ação Direta de Inconstiotucionalidade em discussão deve ser julgada procedente…”.

Ademais, o próprio Ilustre Procurador Geral da República, tecendo juízo técnico sobre a aludida ADI, reconheceu a inconstitucionalidade formal da lei 13.022/14, como se vê da Ementa de seu Parecer:

“EMENTA: (…)

2. A norma do art. 144, § 8º, da Constituição da República dirige-se ao legislador municipal e representa reserva legal qualificadapois a expressão “conforme dispuser a lei” deve ser tomada no sentido de a lei municipal que constituir e organizar guarda municipal não poder estender as atribuições desta para além da destinação constitucional específica de proteção de bens, serviços e instalações de município.

3. Criação e organização de guardas municipais inserem-se na competência dos municípios para dispor sobre matérias de predominante interesse local (CR, art. 30, I). Não possui a União, conquanto louvável o intento de padronizar o regime jurídico das guardas municipais nos milhares de municípios brasileiros, competência legislativa para fixar normas gerais de organização e funcionamento de guardas municipais, sobretudo porque a lei nacional a que se refere o art. 144, § 7º, da Constituição diz respeito a órgãos responsáveis pela segurança pública.

6. Parecer pelo não conhecimento da ação e, no mérito, pela procedência do pedido de declaração de inconstitucionalidade formal ou, casos superadas essas teses, pela procedência parcial do pedido”.

A inconstitucionalidade formal desta lei é simplesmente indesmentível, circunstância que ainda mais se agrava ao exame da inconstitucionalidade material que igualmente a acomete.

De fato, singela apreciação de algumas disposições da Lei 13.022/14 conduzem o intérprete, até com certa facilidade, à conclusão de que a mesma também padece de irremediável inconstitucionalidade material. Atente-se que, apesar de dispor “sobre o Estatuto Geral das Guardas Municipais” e, ainda, de afirmar que objetivava disciplinava o direito constitucional atribuído aos Municípios para criarem tal Instituição, esta norma acabou indo foi além, muito além, dos limites claramente impostos pela Lei Maior. Os equívocos jurídicos iniciam já na redação de seu artigo 2º, quando agrega às atribuições estabelecidas na Carta Magna a função de proteção municipal preventiva, sem explicitar o significado e o alcance dessa expressão, circunstância que permite pensar inclusive em ações próprias de segurança pública lato sensu. O pior, no entanto, é que ainda mais se acentua a ausência de sentido dessa regra quando essa proteção municipal preventiva acaba por ressalvar as competências da União, dos Estados e do Distrito Federal, referindo-se, ao que se pode perceber, a não intromissão na segurança pública enquanto dever do Estado, assim como das polícias dos Estados-membros. Logo, a expressão em análise, ilegalmente, ganha ares de tipo aberto, onde, em tese, poder-se-ia admitir que as Guardas Municipais adotassem práticas exclusivas das polícias, atuando, assim, como se incluída estivesse no rol constitucional taxativo dos Entes responsáveis pela segurança pública, o que realmente não ocorre. Por sinal, o princípio da taxatividade do artigo 144, da Constituição Federal, há muito foi firmado pela Excelsa Corte:

“EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Emenda Constitucional nº 19, de 16 de julho de 1997, à Constituição do Estado do Rio Grande do Sul; expressão do Instituto-Geral de Perícias contida na Emenda Constitucional nº 18/1997, à Constituição do Estado do Rio Grande do Sul; e Lei Complementar nº 10.687/1996, com as alterações introduzidas pela Lei Complementar nº 10.998/1997, ambas do Estado do Rio Grande do Sul 3. Criação do Instituto-Geral de Perícias e inserção do órgão no rol daqueles encarregados da segurança pública. 4. O requerente indicou os dispositivos sobre os quais versa a ação, bem como os fundamentos jurídicos do pedido. Preliminar de inépcia da inicial rejeitada. 5. Observância obrigatória, pelos Estados-membros, do disposto no art. 144 da Constituição da República. Precedentes. 6. Taxatividade do rol dos órgãos encarregados da segurança pública, contidos no art. 144 da Constituição da República. Precedentes. 7. Impossibilidade da criação, pelos Estados-membros, de órgão de segurança pública diverso daqueles previstos no art. 144 da Constituição. Precedentes. 8. Ao Instituto-Geral de Perícias, instituído pela norma impugnada, são incumbidas funções atinentes à segurança pública. 9. Violação do artigo 144 c/c o art. 25 da Constituição da República. 10. Ação direta de inconstitucionalidade parcialmente procedente.” (ADI 2827/RS, Plenário do STF, Relator Ministro Gilmar Mendes, julgado em 06.04.11 – Dje 06.04.11).

 

“EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Emenda Constitucional nº 39, de 31 de janeiro de 2005, à Constituição do Estado de Santa Catarina. 3. Criação do Instituto Geral de Perícia e inserção do órgão no rol daqueles encarregados da segurança pública. 4. Legitimidade ativa da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (ADEPOL-BRASIL). Precedentes. 5. Observância obrigatória, pelos Estados-membros, do disposto no art. 144 da Constituição da República. Precedentes. 6. Taxatividade do rol dos órgãos encarregados da segurança pública, contidos no art. 144 da Constituição da República. Precedentes. 7. Impossibilidade da criação, pelos Estados-membros, de órgão de segurança pública diverso daqueles previstos no art. 144 da Constituição. Precedentes. 8. Ao Instituto Geral de Perícia, instituído pela norma impugnada, são incumbidas funções atinentes à segurança pública. 9. Violação do artigo 144 c/c o art. 25 da Constituição da República. 10. Ação direta de inconstitucionalidade parcialmente procedente” (ADI 3469/SC, Pleno do STF, Relator Ministro Gilmar Mendes, julgado em 16.09.10 – Dje 28.02.11).

Insta ponderar, por oportuno, que a Suprema Corte tem se revelado bastante ciosa em relação às competências definidas na Carta Maior da República, especialmente quando, como no caso vertente, a questão envolve o princípio da taxatividade, como se depreende da seguinte decisão:

“Ementa: AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. CRIME DE ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. ARTIGO 35 DA LEI Nº 11.343/06. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. INADMISSIBILIDADE. COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL PARA JULGAR HABEAS CORPUSCRFB/88, ART. 102, I, D E I. HIPÓTESE QUE NÃO SE AMOLDA AO ROL TAXATIVO DE COMPETÊNCIA DESTA SUPREMA CORTE. (…). 4. A competência originária do Supremo Tribunal Federal para conhecer e julgar habeas corpus está definida, exaustivamente, no artigo 102, inciso I, alíneas d e i, da Constituição da República, sendo certo que o paciente não está arrolado em qualquer das hipóteses sujeitas à jurisdição desta Corte. 5. Agravo regimental desprovido” (HC 138634/SP, Relator Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 24.02.17 – Dje 047 -13.03.17).

Por outro lado, a observação das disposições do artigo 3º, da Lei 13.022/14, impõe enorme surpresa em face da injustificável dissonância que guardam relativamente aos limites impostos no artigo 144, § 8º, da Carta Política. Examine-se a norma:

Art. 3o  São princípios mínimos de atuação das guardas municipais:  

I – proteção dos direitos humanos fundamentais, do exercício da cidadania e das liberdades públicas;  

II – preservação da vida, redução do sofrimento e diminuição das perdas;  

III – patrulhamento preventivo;  

IV – compromisso com a evolução social da comunidade; e  

V – uso progressivo da força. 

Atente-se que, ao cotejar a finalidade constitucional das Guardas Municipais e os princípios do citado artigo, não há qualquer vínculo ou limitação entre estes e a competência restrita que lhes alcança a Constituição Federal, de proteção de bens, serviços e instalações pertencentes à municipalidade. E isto porque, sem nenhuma dúvida, proteção de direitos humanos fundamentais, do exercício da cidadania e das liberdades públicas (inciso I), preservação da vida, redução do sofrimento, diminuição das perdas (inciso II), patrulhamento preventivo (inciso III), compromisso com a evolução social da comunidade (inciso IV) e uso progressivo da força, não se encontram, por óbvio, sob o manto da proteção de bens, serviços e instalações dos Municípios. Tratam-se, isto sim, de medidas de política criminal, de políticas públicas de bem estar dos cidadãos e de medidas de segurança pública atribuídas aos Entes taxativamente arrolados no artigo 144, da Carta Magna, local de que não participam as Guardas Municipais. Portanto, a inconstitucionalidade material desta norma, pela forma como estão postos os princípios nela elencados, é clara e insofismável. O artigo 5º da lei em apreciação também apresenta graves defeitos normativos. Vejam-se as falhas do dispositivo:

Art. 5o  São competências específicas das guardas municipais, respeitadas as competências dos órgãos federais e estaduais:  

III – atuar, preventiva e permanentemente, no território do Município, para a proteção sistêmica da população que utiliza os bens, serviços e instalações municipais;  

 

A redação da norma é desastrosa. Atuar, preventiva e permanentemente, na proteção de bens, serviços e instalações municipais é dever das Guardas Municipais. Todavia, atuar, preventiva e permanentemente, na proteção da população que os utiliza não é tarefa que lhes caiba, porque se trata de ação afeita aos Órgãos de segurança pública. Por certo a população de um Município não se afeiçoa, nem se confunde com o conceito de bens, serviços e instalações. É certo, porem, que poder-se-ia admitir essa proteção apenas de forma excepcional, não preventiva, não permanente e nem sistêmica, mas, sim, apenas quando membros da população estiverem utilizando  bens, serviços e instalações do Município.

IV – colaborar, de forma integrada com os órgãos de segurança pública, em ações conjuntas que contribuam com a paz social;

A paz social é objetivo a ser alcançado pelos Órgãos de segurança pública, os quais estão revestidos de legitimidade e competência para tanto, diferentemente das Guardas Municipais. Assim instituições de natureza diversa, com atribuições legais distintas e competências previstas ou limitadas em lei, não podem estabelecer integração que misture atribuições, ainda mais à consecução de um objetivo bastante genérico, quer dizer, que admite as mais variadas providências e medidas que, na sua quase totalidade, são vedadas às Guardas Municipais.     

 

V – colaborar com a pacificação de conflitos que seus integrantes presenciarem, atentando para o respeito aos direitos fundamentais das pessoas;  

Impõe-se ponderar que, se o conflito relaciona-se aos bens, serviços e instalações do município, não se trata de colaboração da Guarda Municipal visando a pacificá-lo, mas, antes disto, conforma sua obrigação legal de agir. Afora isto, faculta-se à Guarda Municipal atuar, como ocorre com qualquer cidadão, eis que esta incumbência, a pacificação de conflitos, é restrita às polícias militar e civil, Órgãos de segurança pública.

VI – exercer as competências de trânsito que lhes forem conferidas, nas vias e logradouros municipais, nos termos da Lei no 9.503, de 23 de setembro de 1997 (Código de Trânsito Brasileiro), ou de forma concorrente, mediante convênio celebrado com órgão de trânsito estadual ou municipal;

A inconstitucionalidade desta norma chega mesmo a impressionar. Conforme determina o artigo 5º, do CTB, compete ao sistema nacional de trânsito, formado pelo conjunto de órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, o exercício das atividades de planejamento, administração, normatização, pesquisa, registro e licenciamento de veículos, formação, habilitação e reciclagem de condutores, educação, engenharia, operação do sistema viário, policiamento, fiscalização, julgamento de infrações e de recursos e aplicação de penalidades. Por outro lado, o artigo 7º[4] do mencionado Código esclarece quais os Órgãos que compõem tal sistema nacional, nele não se verificando as Guardas Municipais, mas indicando, por exemplo, as polícias militares. E o artigo 24, III, do CTB, então, ainda é bem mais específico ao atribuir às Polícias Militares a execução da fiscalização de trânsito, “quando e conforme convênio firmado, como agente do órgão ou entidade executivos de trânsito ou executivos rodoviários, concomitantemente com os demais agentes credenciados”, no caso, os agentes específicos de trânsito que, evidentemente, não se confundem com as Guardas Municipais. Aliás, oportuno realçar que, mesmo no âmbito dos Municípios, conforme dispõe o artigo 24 do CTB, as atividades de trânsito não estabelecem qualquer participação das Guardas Municipais. Isto, aliado ao fato de que as questões de trânsito não se amoldam ao conceito de bens, serviços e instalações do município, conduzem esta norma à inconstitucionalidade. 

VIII – cooperar com os demais órgãos de defesa civil em suas atividades;

Possível, desde que as atividades da defesa civil estejam vinculadas apenas aos bens, serviços e instalações do Município.

IX – interagir com a sociedade civil para discussão de soluções de

problemas e projetos locais voltados à melhoria das condições de segurança das comunidades;  

X – estabelecer parcerias com os órgãos estaduais e da União, ou de Municípios vizinhos, por meio da celebração de convênios ou consórcios, com vistas ao desenvolvimento de ações preventivas integradas;  

 

Ações de policiamento ostensivo e medidas preventivas integradas constituem, obviamente, atos de segurança pública que podem ser praticados pelas polícias estaduais, em conjunto ou separadamente. As Guardas Municipais não estão revestidas de legitimidade e competência constitucional para estes atos, razão pela qual esta norma é inconstitucional.   

XI – articular-se com os órgãos municipais de políticas sociais, visando à adoção de ações interdisciplinares de segurança no Município;  

XII – integrar-se com os demais órgãos de poder de polícia administrativa, visando a contribuir para a normatização e a fiscalização das posturas e ordenamento urbano municipal;  

XIII – garantir o atendimento de ocorrências emergenciais, ou prestá-lo direta e imediatamente quando deparar-se com elas;  

XIV – encaminhar ao delegado de polícia, diante de flagrante delito, o autor da infração, preservando o local do crime, quando possível e sempre que necessário; 

Como regra, tais ações são obrigatórias quando visarem atender a finalidade restrita das Guardas Municipais. A prisão em flagrante delito, o encaminhamento do autor do fato à autoridade policial e a preservação do local de crime, por certo são medidas obrigatórias se relativas aos bens, serviços e instalações municipais. Afora isto, tais providências são facultativas, como de resto ocorre com os cidadãos. 

XV – contribuir no estudo de impacto na segurança local, conforme plano diretor municipal, por ocasião da construção de empreendimentos de grande porte;  

XVI – desenvolver ações de prevenção primária à violência, isoladamente ou em conjunto com os demais órgãos da própria municipalidade, de outros Municípios ou das esferas estadual e federal;  

 

Tratam-se estas regras de evidente intromissão  da Guarda Municipal em políticas governamentais típicas da área da segurança pública, papel que, mais uma vez, não lhes é conferido pela Constituição Federal.

XVII – auxiliar na segurança de grandes eventos e na proteção de autoridades e dignatários;

Sem dúvida, segurança de grandes eventos e proteção de autoridades é atribuição dos Órgãos de Segurança Pública, sendo flagrante a inconstitucionalidade desta norma.   

 

XVIII – atuar mediante ações preventivas na segurança escolar, zelando pelo entorno e participando de ações educativas com o corpo discente e docente das unidades de ensino municipal, de forma a colaborar com a implantação da cultura de paz na comunidade local.

 

Norma dúbia que não esclarece que ações preventivas seriam estas e qual o alcance da segurança escolar, que, na verdade, em algumas escolas já é efetuada pela Polícia Militar.

Parágrafo único.  No exercício de suas competências, a guarda municipal poderá colaborar ou atuar conjuntamente com órgãos de segurança pública da União, dos Estados e do Distrito Federal ou de congêneres de Municípios vizinhos e, nas hipóteses previstas nos incisos XIII e XIV deste artigo, diante do comparecimento de órgão descrito nos incisos do caput do art. 144 da Constituição Federal, deverá a guarda municipal prestar todo o apoio à continuidade do atendimento.  

O próprio artigo, confuso, por sinal, define os limites de atuação da Guarda Municipal ao referir-se “No exercício de suas competências”, o que significa que esta cooperação e esta atuação conjunta somente poderá ser admitida pelos Órgãos apontados no artigo 144, da Constituição Federal, quando se tratar de ações relativas aos bens, serviços e instalações dos Municípios. Afora isto, o caso encerra extrapolação inaceitável dos limites constitucionais impostos às Guardas Municipais. Como se constata, ao exame teleológico da Lei 13.022/14, o seu significado, o valor que pretende proteger ou o resultado que visa a atingir, não estão de acordo com a razão de ser e de existir da norma constitucional que permitiu a criação das Guardas Municipais e lhe deu destinação específica, a de proteção de bens, serviços e instalações dos Municípios. E quando isto ocorre, quer dizer, se a leitura do texto normativo conduz a uma interpretação que aniquila, prejudica ou embaça o interesse e o valor que a norma visa a proteger, então o resultado possível não escapa das seguintes conclusões: há errônea interpretação da norma; há, como se dá no caso vertente, constatação de que a lei observada contraria a Constituição Federal. Portanto, ainda do ponto de vista teleológico, somente haverá legalidade normativa quando a interpretação jurídica da norma amoldar-se aos interesses que tal norma visa tutelar e quando resguarde o valor que ela pretende proteger, fazendo prevalecer o objetivo que traz ínsito em seu texto. Se assim não for, a impropriedade, a ilegalidade, enfim, a inconstitucionalidade da norma, será flagrante. O princípio normativo inserto no § 8º, do artigo 144, da Carta Política, é exatamente este: proteção de bens, serviços e instalações dos Municípios. E princípio, como leciona Geraldo Ataliba[5], citando Agostinho Gordillo, “…é muito mais importante do que uma norma […]. O princípio é uma norma; mas é mais do que uma norma, uma diretriz, é um norte do sistema, é um rumo apontado para ser seguido por todo o sistemaRege toda a interpretação do sistema e a ele deve se curvar o intérprete, sempre que se vai debruçar sobre os preceitos contidos no sistema”. Assim, se o princípio que conforma uma norma rege de forma integral o sistema, toda e qualquer norma que com ele colida é inconstitucional.

 

A segurança pública é um dever precípuo da União, eis que, por força de um pacto federativo nefasto, aos cofres do tesouro nacional são destinados grande parte dos recursos arrecadados pelos Estados Membros, com efeitos negativos direitos nos mesmos e na municipalidade que os compõem. Por conta disto, ao invés de permitir a criação de forças de segurança privativas de bens, serviços e instalações das municipalidades, impunha-se à União e aos Estados, impedindo o endividamento cada vez maior dos Municípios, concentrarem recursos financeiros nas instituições de segurança pública, aquelas definidas na Carta Magna e que consubstanciam forças públicas tradicionais, especializadas, conveniente e adequadamente preparadas aos seus encargos constitucionais. Antes de criar corpos de guardas municipais sem finalidade de segurança pública, aos Governos se impõe (re)pensar políticas públicas de segurança sérias e eficazes, como, por exemplo, investir recursos nas polícias militar e civil dos Estados de modo a dotá-las de equipamentos adequados, de tecnologia moderna e de efetivos suficientes. Antes de pensar em criar novas forças, com alocação de recursos que os Municípios, na sua grande maioria, não suportam, deveriam os Governos levarem a sério a proposta de instituir o ciclo completo de polícias, através do qual as Polícias Militares e Civis, mesmo mantendo sua autonomia e representatividade, se completem, se integrem e empreendam ações, de forma conjunta ou independente, no combate e prevenção à criminalidade e nas prisões dos que afrontam a paz social. Formar novas polícias, instituindo outras e vultosas despesas para organizá-las, efetivamente não é o que o povo brasileiro almeja e espera de seus governantes, especialmente quando o atual sistema de segurança pública encontra-se sucateado e abandonado, fazendo com que os cidadãos fiquem à mercê da própria sorte e de suas próprias iniciativas. Qual a Constituição que queremos ?    “As ‘constituições de fachada’, as ‘constituições simbólicas’, as ‘constituições alibi’, as ‘constituições semânticas’” ? Aquelas que “gastam muitas palavras na afirmação de direitos, mas pouco fazem quando a sua efectiva garantia” ? Claro que não. O povo brasileiro quer o que a FENEME está, de modo valente e atento aos interesses da Nação, pleiteando junto ao Supremo Tribunal Federal: a garantia de que os princípios da ordem constitucional assegurem, de fato e de direito, um verdadeiro Estado de direito. E não existe Estado de direito, nem democracia plena, na edição de normas que afrontam a Constituição Federal, como ocorre com a Lei 13.022/14.           

 


[1] “Hermenêutica e Aplicação do Direito – 16ª ed., Forense, Rio de Janeiro, 1997, p. 357”.

[2] “Canotilho, Joaquim José Gomes. Estado de Direito. Cadernos de Direito da Fundação Mario Soares Lisboa: Edição Gradiva, 1999, pág. 20”

[3] “O princípio federativo compõe-se dos seguintes elementos:

a) da soberania nacional e das autonomias locais das entidades componentes do Estado;

b) da repartição de competências entre essas entidadeso que assegura a sua personalização política e o âmbito de competência autônoma e exclusiva de cada qual;

c) da participação de todas elas na formação da vontade nacional” (ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. República e Federação no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 232.).

[4] Art. 7º Compõem o Sistema Nacional de Trânsito os seguintes órgãos e entidades:

 I – o Conselho Nacional de Trânsito – CONTRAN, coordenador do Sistema e órgão máximo normativo e consultivo;

 II – os Conselhos Estaduais de Trânsito – CETRAN e o Conselho de Trânsito do Distrito Federal – CONTRANDIFE, órgãos normativos, consultivos e coordenadores;

III – os órgãos e entidades executivos de trânsito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;

IV – os órgãos e entidades executivos rodoviários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;

V – a Polícia Rodoviária Federal;

VI – as Polícias Militares dos Estados e do Distrito Federal; e

VII – as Juntas Administrativas de Recursos de Infrações – JARI.

 

[5] República e Constituição, 2001, pág. 35.