O Espelho ou então, o por detrás da farda

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O Espelho ou então, o por detrás da farda

 

* Major César Augusto Ribeiro de Oliveira
“Por de trás da farda também tem um homem, que tem sonhos e planos como qualquer um.”
Érlon Péricles
Este breve artigo inspira-se no conto ‘O Espelho’ escrito por Machado de Assis ao final do século XIX, e conjuga-se a uma frase da poesia de Erlon Péricles, poesia a qual participou do Festival Poético Musical nas comemorações dos 160 anos da Brigada Militar.
Em ‘O Espelho’, Jacobina, um homem de 45 anos está reunido com outros quatro amigos entre quarenta e cinqüenta anos a ouvir suas histórias e, em determinado momento, passa a narrar um causo de sua vida que acontecera por volta dos seus 25 anos. Já de início, diz: “Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas… Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora e outra que olha de fora para dentro.(…) A alma exterior pode ser um espírito, um fluído, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação (…) Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira: as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira.”
Exercitemos: naquilo que Jacobina fala por alma, poderíamos substituir por algo como a essência, o si-mesmo inconsciente, a personalidade, o que viria a aproximar – a posteriori – o seu discurso a teorias psicanalíticas de Carl G. Jung ou de Sigmund Freud. Ao alertar sobre a possibilidade da perda de “uma das metades” da alma, podemos inferir na Psicologia Analítica a uma situação clínica onde o sujeito passa por um processo de identificação do ego com a persona (máscara), ou seja, ele é o que aparenta.
No conto, resumidamente, relata que era pobre e havia sido nomeado Alferes da Guarda Nacional. “Não imaginam o acontecimento que isto foi em minha casa. Minha mãe ficou tão orgulhosa, tão contente! Chamava-me o seu alferes. Primos e tios, foi tudo uma alegria sincera e pura”. – Qualquer semelhança com a notícia de aprovação do então CFO é mera coincidência (?).
E a narrativa vai até o ponto em que ninguém mais o chama pelo nome: era alferes para cá, alferes para lá, sendo que uma tia intimou sua mãe para que o mesmo ficasse não menos do que trinta dias em sua casa num sítio distante e solitário, mas com a exigência de que levasse a farda – ela era viúva de um Capitão. E ele foi. No sítio era tratado por “Senhor alferes” e teve a deferência de ter sido colocada em seu quarto a mobília mais nobre da casa, um espelho, que segundo contavam, era de herança e teria vindo ao Brasil com a Corte de D. João em 1808. Tanta adulação acabou por estragá-lo: “O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra (…) Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, (grifo meu) nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado (…) .”
O conto, apesar de breve, é rico em simbolizações e diz muito, em interpretação, daquelas pessoas que ao exercerem suas profissões (no texto o militar induz a pensarmos em nossa carreira, mas é válido para muitos outros ofícios), acabam por esquecer da essência, o sujeito humano, e passam a viver pela “alma que olha de fora para dentro”. Sintetizo, para reflexão, sobre o quão importante é mantermos em harmonia nossa vida de caserna com aquela outra onde podemos ser nós mesmos – por de trás da farda – com nossas famílias, amigos, em momentos sociais e de lazer ou de puro – também necessário e prazeroso – ócio.
Precisamos estar preparados para os afazeres do alferes, mas também, para o exercício da vida, de uma vida saudável. Sabem o que acontece com o personagem de Machado de Assis?
Três semanas após estar na casa da tia, uma filha daquela adoece gravemente e ela ausenta-se por algumas semanas. Bem, se no primeiro dia ficaria no sítio somente com os escravos sendo chamado de “Nhô alferes” e bajulado com ditos de que chegaria a coronel, no dia seguinte, encontrar-se-ia a sós com alguns poucos animais que restaram, pois até os cachorros haviam fugido com os escravos! Permanecera a sós por oito dias e sem alguém a lhe prestar deferências. Sobre o abandono? Dizia: “Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico. Dormindo era outra cousa. O sono dava-me alívio (…) Nos sonhos fardava-me, orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes; vinha um amigo de nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de capitão ou major; e tudo isso me fazia viver”. Como é bom sonhar! Bem, ao cabo de oito dias na mais pura solidão, sem querer, olha-se no espelho mas nada vê: é apenas um vulto sem traços definidos, sem contorno, sem identidade. Não é capaz de reconhecer-se, vê-se arruinado, deixando de existir. Assustado, decide por ir embora, mas ao pegar suas roupas para vestir-se de súbito tem uma idéia: apanha sua farda e paramenta-se completamente. Ao voltar a olhar-se no espelho: “(…) o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. (…) Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria, e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante fui outro.”
É possível sermos outro a cada dia, aliás, é necessário que busquemos crescimento e amadurecimento pessoal para novas e saudáveis mudanças. Embora a esta altura da vida nossa personalidade esteja formada, traços de personalidades, o caráter e o temperamento que a compõem, todavia, não são imutáveis, o que nos possibilita aprendermos em nossas experiências e a acreditarmos que podemos melhorar.
Do contrário, se negligenciarmos nossa “alma interior”, poderemos ficar como o alferes, preso à farda: “Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes e sentava-me diante do espelho, lendo, olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regímen (sic) pude atravessar mais seis dias de solidão, sem os sentir”.

* Especialista em Polícia Comunitária e Psicólogo.
E-mail: cesaraugusto@brigadamilitar.rs.gov.br